Segréis de Lisboa
Nos 50 anos dos Segréis de Lisboa
por Rui Vieira Nery
Manuel Morais nasceu em 1943 e fez os seus estudos musicais no Conservatório de Lisboa, onde teve como professor nada mais nada menos do que um dos mais célebres executantes de Viola e vihuela do mundo, Emilio Pujol. Nessa mesma escola foi também aluno de Santiago Kastner, um dos grandes pioneiros da Musicologia portuguesa e de todo o movimento moderno de redescoberta da Música Antiga no País.
Em 1962 e 63 participou nos seminários regidos por Safford Cape na Fundação Calouste Gulbenkian, e foi membro do primeiro Conjunto moderno de interpretação da Música Antiga em instrumentos originais em Portugal, o Grupo de Música Antiga de Lisboa, que surgiu em in 1964 como resultado direto dos ensinamentos de Cape.
Em 1968, graças a uma bolsa da mesma Fundação, foi admitido na Schola Cantorum de Basileia, na Suíça, que era então a Meca da prática performativa historicamente informada da Música Antiga, e aí foi aluno de alaúde de Eugen Dombois e estudou notações históricas com Raymond Meylan.
Em 1972, quando regressou a Lisboa, era por isso de longe o intérprete português mais especializado no repertório pré-oitocentista, e decidiu constituir o seu próprio grupo, embora convidando para o integrar alguns dos músicos locais com quem tinha trabalhado anteriormente.
Nasceram assim os Segréis de Lisboa, que depressa viriam a ter um impacto decisivo na vida musical portuguesa.
O primeiro LP do Conjunto, Música Ibérica da Idade Média e do Renascimento (1974), foi seguido, alguns anos mais tarde, pelo álbum duplo A Música no Tempo de Camões (1979), que continua a ser, em minha opinião, uma das grandes referências de toda a discografia de Música Antiga em Portugal.
Ao longo das décadas seguintes, os Segréis continuaram a lançar disco após disco, explorando diferentes áreas do repertório musical pré-romântico, em muitos casos em primeira gravação absoluta: canções e danças para o Teatro de Gil Vicente, o cancioneiro polifónico maneirista de Belém, cantatas profanas do início do século XVII, música orquestral e litúrgica de Carlos Seixas, obras sacras de João de Sousa Carvalho, Luciano Xavier dos Santos e José Joaquim dos Santos, ou música de salão do reinado de D. Maria I.
Mas sobretudo tocaram de forma intensiva por todo o País, das grandes salas de concerto de Lisboa e do Porto a pequenas igrejas e teatros de pequenas localidades onde muitas vezes nunca se tinha ouvido Música Antiga nos tempos modernos. E, ao mesmo tempo, fizeram frequentes digressões internacionais, por vezes a convite de importantes festivais de Música Antiga, mas também recorrentemente para acompanharem as viagens oficiais de chefes do Estado ou do Governo portugueses, como expoentes respeitados do que havia de melhor na cultura musical de Portugal.
Durante os últimos cinquenta anos, nenhum outro Conjunto fez mais para levar a Música Antiga aos hábitos de escuta do público português, ou para representar e promover internacionalmente o património musical português.
Foram muitos os músicos que, numa ou outra etapa, integraram os Segréis de Lisboa, quer no palco, quer em estúdio: Jennifer Smith, Helena Afonso e Ana Ferraz (sopranos), Alexandra do Ó (meio-soprano), Fernando Serafim e Rui Taveira (tenores), Orlando Worm e António Wagner Diniz (barítonos), Catarina Latino e Pedro Couto Soares (flauta de bisel), Anabela Chaves e António Oliveira e Silva (Viola de arco), Pilar Torres, Kenneth Frazer e Miguel Ivo Cruz (Viola de gamba), Luísa Vasconcelos (violoncelo), Duncan Fox (contrabaixo), Joaquim Simões da Hora (órgão), ou Rui Paiva (cravo), entre outros.
Pessoalmente, nunca se me apagarão as memórias felizes das várias ocasiões em que com eles me apresentei como cravista, em especial a da primeira audição que demos em Portugal do Combattimento di Tancredi e Clorinda de Monteverdi nas Jornadas Gulbenkian de Música Antiga, em 1981, com uma espantosa interpretação do narrador por Helena Afonso, ou de quando tocámos na missão jesuíta de Chiquitos, uma monumental estrutura setecentista toda de madeira, para um público de mais de dois mil espectadores, na sua maioria oriundos das aldeias indígenas circundantes, a aplaudirem furiosamente as modinhas brasileiras enfeitiçadoras de Jennifer Smith.
Para comemorar o quinquagésimo aniversário da criação dos Segréis de Lisboa, bem como a celebração dos seus próprios oitenta anos, Manuel Morais decidiu regressar ao estúdio para produzir um novo álbum, juntando para isso um elenco de jovens músicos talentosos – incluindo a sua neta Matilde – para um programa fora do comum. Uma parte dele consiste em peças que foram, no decurso das últimas cinco décadas, pilares dos concertos e gravações do grupo, como uma evocação comovente do passado: polifonia do século XV associada à forte ligação que então existia entre as cortes de Portugal e da Borgonha, música para alaúde do Renascimento, vilancicos e romances portugueses e espanhóis do século XVI.
Mas, ao mesmo tempo, Manuel Morais, que sempre fez questão de sublinhar a constante interação entre elementos populares e eruditos na Música Antiga ibérica, expande agora este princípio ao incorporar no programa do disco diversas peças de Música Popular urbana portuguesa adaptadas à instrumentação renascentista, desde alguns dos exemplos mais remotos do Fado a uma canção de um dos grandes sucessos de comédia de Cinema dos anos 30 ou a duas baladas maravilhosas do mais importante cantor-autor português da segunda metade do século XX, José Afonso.
E como, por outro lado, sempre insistiu que a interpretação da Música Antiga é, acima de tudo, uma experiência viva, independentemente de em quanta informação histórica e musicológica se baseia, decidiu lançar um desafio a vários compositores contemporâneos para escreverem para estes instrumentos antigos, tendo em consideração a sua delicadeza sonora e o espírito do respetivo repertório original, mas a partir de uma abordagem claramente moderna e individual – Ivan Moody, João Vaz, Eurico Carrapatoso e Sérgio Azevedo.
O resultado é um fascinante – ainda que inesperado – mosaico de momentos musicais contrastantes, unificados por uma permanente sensação de enorme fluência musical, de comunicação emocional sincera, e a cada momento por uma alegria exuberante de fazer música. Que melhor forma de comemorar os 50 anos dos Segréis de Lisboa e toda uma vida de serviço público distinto do seu fundador e diretor? Muito obrigado por tudo, Manuel.
Rui Vieira Nery
Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança
Discografia
Álbuns
Música Ibérica da Idade Média e do Renascimento (LP, Álbum) A voz do dono 1974
A Música no Tempo de Camões = Music In The Time Of Camões (2×LP, Álbum, Stereo) A voz do dono 1979
Segréis de Lisboa / João de Sousa Carvalho e Carlos Seixas – Cremilde Rosado Fernandes / Simões da Hora – XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura – Portugal /1983 – Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento (3×LP, Álbum) Valentim de Carvalho, Valentim de Carvalho, Valentim de Carvalho 1983
Música Portuguesa Maneirista – cancioneiro Musical de Belém 3 versões Movieplay 1988
Música de Salão do Tempo de D. Maria I – Portuguese Salon Music Of The Late Eighteenth And Nineteenth Century – Modinhas , Conçonetas e Instrumentais (CD, Album) Movieplay 1994
Segréis de Lisboa, Coro de Câmara de Lisboa – La Portingaloise – Música do Tempo dos Descobrimentos / Music from the Age of Discoveries 3 versões Movieplay Classics 1994
Stabat Mater Miserere: Tributo a José Joaquim dos Santos (CD, Álbum) Movieplay 1997
Ana Ferraz, Alexandra do Ó, Segréis de Lisboa – Música na Corte De D. João V – Cantatas Humanas a Solo e a Duo 2 versões Movieplay 1997
Modinhas e Lunduns dos Séculos XVlll E XlX (CD, Álbum) Movieplay 1997
Carlos Seixas, Segréis de Lisboa, José Luis González Uriol – Concerto, Sonatas (CD, Álbum) Portugaler 2002
Segréis de Lisboa, Manuel Morais – Música para o Teatro de Gil Vicente / Music For The Plays of Gil Vicente (CD, Álbum) Portugaler 2006
Segréis de Lisboa, Coral Lisboa Cantat – Carlos Seixas – Musica Sacra (CD, Álbum, Stereo) Portugaler
Segréis de Lisboa, Música de salão no tempo de D. Maria I
Segréis de Lisboa, O alaúde na Península Ibérica